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Análise de ensino de ciências com experimentos na escola

fundamental pública paulista

Hands On Science Education/La Main à La Pâte - An analysis of science teaching with experiments in public schools in São Paulo

Beatriz de Castro Athayde, Rafaela Samagaia, Amélia Império Hamburger e Ernst W. Hamburger

Universidade de São Paulo - Estação Ciência/ Instituto de Física

Rua Guaicurus, 1394 - Lapa

CEP 05033-002 São Paulo, SP, Brasil

Resumo

Programas de ensino de ciências cada vez mais cedo na escola têm sido propostos e utilizam atividades experimentais como instrumento eficaz de mediação de interações socializadoras. A aplicação desse tipo de programa traz à tona, uma vez mais, dificuldades inerentes às práticas de ensino no cenário educacional atual: formação de professores e condições de sala de aula. Particularmente os professores destinados às classes iniciais passam por processos formativos que não incluem o estudo das ciências. Neste trabalho descrevemos e analisamos a implantação de projeto, em escala piloto, em escolas da rede estadual, na Capital de São Paulo. Através de contato direto de treinamento em serviço e de discussões de avaliação das atividades são levantados dados sobre a ação e o pensamento das professoras das escolas envolvidas com a participação da Estação Ciência. Destacamos as transformações ocorridas que afetam as relações com os estudantes, com a escola e com a comunidade. A emergência de novos laços sociais ressalta a importância do professor e a diversidade de papéis que ele representa. Uma política de longo prazo requer currículos de cursos superiores de habilitação que incluam aprofundamento de sua formação e definição mais clara, na sociedade, da função da escola.

Abstract

Science teaching in early stages of schooling has been recently proposed in several countries, using experimental activities as effective instrument for social interactions. These programs show, once more, difficulties inherent to the educational system, even in organized societies: teachers´ training and classroom conditions. Particularly the teachers for the initial grades don't have scientific training. In this paper some features of the implementation of a program applied to governmental schools in the city of São Paulo, on a pilot scale, are reported and analyzed. Through direct contact in service training and in evaluation discussions of the activities data are collected about thoughts and actions developed by the teachers involved with Estação Ciência. Transformation in their relations with the students, within the school and with the community are focused. The emergence of new social interactions emphasizes the relevance and diversity of the teachers´ role. A long range policy requires improvement of teacher training curricula and a clearer definition, in society, of the school's function.

Origem do Projeto Mão na Massa

Nos EEUU e na França o ensino de ciências com experimentos realizados pelos alunos em sala de aula tem sido recentemente introduzido, desde as primeiras séries do ensino fundamental, com resultados favoráveis não só para a alfabetização das crianças como também para a socialização e o desenvolvimento de habilidades de raciocínio. As Academias de Ciências desses países apoiaram os projetos influenciando Academias de outros países. A Academia Brasileira de Ciências, em especial, apoia o projeto ABC na Educação Científica - Mão na Massa, em parceria com o projeto francês La Main à la Pâte destinado às primeiras séries escolares.1

Na França, o projeto La Main à la Pâte, www.inrp.fr/lamap, tem sido aplicado desde 1996 com crianças do ensino maternal e primário, particularmente em regiões economicamente desfavorecidas e com problemas referentes à língua oral e escrita (em regiões com muitos filhos de imigrantes cuja língua materna não é o francês, por exemplo). A partir do ano de 2000, o projeto foi adotado nacionalmente pelo governo francês, que passou a apoiar sua implementação em todas as escolas do país. A proposta foi desenvolvida e apoiada por Georges Charpak, Prêmio Nobel, inspirada e adaptada do projeto americano Hands On, por sua vez inspirado por Leon Lederman, também Prêmio Nobel, que aplicou em escolas no entorno do Fermi Lab, no estado de Illinois, EEUU.

O projeto no Brasil teve início em maio de 2001 quando foi firmada colaboração entre as Academias de Ciências do Brasil e da França e o Institut National de Recherche Pédagogique (INRP). Foi organizada visita de nove pessoas a escolas francesas onde o projeto vem sendo desenvolvido. O grupo brasileiro reuniu profissionais dos Centros de Divulgação Científica e Cultural da Universidade de São Paulo (Estação Ciência e CDCC - São Carlos), Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e das redes de educação estadual e municipal das cidades de São Paulo, São Carlos e Rio de Janeiro.

A equipe brasileira dividiu-se em quatro pólos autônomos de aplicação: 1. São Paulo, Capital -rede estadual; 2. São Paulo, Capital - rede municipal; 3. São Carlos - redes municipal e rede estadual; 4. Rio de Janeiro - redes municipal e rede estadual.

O presente trabalho contempla as atividades desenvolvidas pela equipe da Estação Ciência na rede estadual da capital de São Paulo. Trata-se de pesquisa piloto para compreender processos de implantação e resultados preliminares que possam respaldar propostas de ação, de curto e de longo prazos, na aplicação do projeto de ensino de ciências nos primeiros anos de escolaridade.

Delineamento de Metodologia

Os dados provém de observações feitas das interações entre todos os parceiros da organização de conteúdos e prática nas salas de aulas: formadores-professores, professores entre si, formadores- equipes das escolas, coordenadores- professores, Secretarias-escolas, e professores- alunos em sala de aula. É metodologicamente significativa a inclusão de todos os participantes como agentes históricos. Em outras palavras, é ponto importante que cada um se reconheça como parte dos fenômenos estudados e que tenham a expectativa de que suas ações e avaliações, através das observações e significados atribuídos nas análises, possam se transformar em dados e conclusões que deverão realimentar as propostas iniciais. Essa é a perspectiva das reuniões de discussão. Este trabalho pretende tornar objetivo, para ser compartilhado, o espaço de significação trazido pelas experiências pessoais. (Heller, 1985; Bahktin, 1981).

As interações, que se configuram como processos de natureza social, são mediadas por experimentos sobre temas contidos no projeto La Main à la Patê. A proposta inicial de aplicação do projeto é para professores em exercício. Sabe-se que esses professores não têm a formação necessária, principalmente para temas de física. A proposta francesa sugere temas, atividades e métodos de sala de aula. A primeira constatação nas experiências realizadas é de que a questão de conteúdo requer estudos específicos.

Uma análise detalhada sobre o conteúdo envolve uma ampla gama de áreas afins, por exemplo, a história e a filosofia da ciência (Heger, 1990), e áreas como psicologia do desenvolvimento e linguagem (Wallon, 1942; Vygotsky, 1964, por exemplo).

Neste primeiro estudo, a observação recorta para análise as transformações ocorridas, na prática do professor e da escola, que afetam as relações com os estudantes, com a escola e com a comunidade que favoreceram a constituição de sociabilidade dialógica. São mudanças de qualidade nas interações, isto é, como a mediação dos temas em sua apresentação experimental com a observação, registro e discussão, favoreceu o estabelecimento de relações dialógicas nas diversas esferas das relações escolares. Procura-se compreender que estrutura escolar corresponderia ao contexto dessas transformações em termos da formação de seus agentes e da definição do sistema escolar.

O Projeto Mão na Massa na Rede Estadual de São Paulo2

Em julho de 2001, o grupo de formadores da Estação Ciência capacitados na primeira visita à França, fez a apresentação do projeto a uma equipe de professores, com apoio da CENP para compor um grupo piloto com quatro escolas da rede estadual de ensino. Em seguida, tiveram início atividades de capacitação na Estação Ciência, com o objetivo de apresentar as atividades e a metodologia, além de discutir as dificuldades de aplicação do projeto em sala de aula.

Em 2002, o projeto passa a ter a participação de oito escolas, com um número maior de professores atuando, com isso a capacitação passa a ser oferecida nas escolas no horário de trabalho pedagógico coletivo.

A metodologia de sala de aula apresentada na proposta francesa, sugere que a atividade seja iniciada com a apresentação de uma situação problema pelo professor, para a qual são formuladas coletivamente algumas possíveis soluções. Em seguida, as hipóteses sugeridas são testadas através de um aparato experimental normalmente simples, cabendo às crianças fazerem o registro das observações livres de qualquer formatação (que o professor não deverá corrigir). Após esta etapa, os grupos compartilham as observações e conclusões e através de discussão coletiva, produzem as definições finais, consensuais na classe. A atividade termina com um registro de todas as etapas, feito pelas crianças e dirigido pelo professor que posteriormente, o corrige. Para diferenciar esses dois registros usa-se papéis de cores distintas ou cadernos diferenciados. O projeto prevê também, o envolvimento dos pais dos alunos e de agentes da comunidade nas atividades como forma de otimizar os resultados.

Cabe ressaltar, no entanto, que a proposta original francesa contempla dez princípios relativos à ação pedagógica e as parcerias com familiares, comunidade e professores universitários e são eles que garantem a coerência entre as ações propostas nos diferentes países participantes e o projeto original, permitindo algum nível de adaptação para a realidade local. Este aspecto relevante é discutido por Astolfi et al., 1978 “Qual alfabetização científica para qual sociedade?”, corroborando a necessidade de consideração do ambiente local no desenvolvimento de propostas. Por esta razão, as etapas anteriormente descritas, podem e devem sofrer alterações locais, que adaptem a metodologia ao contexto, o que vem sendo amplamente incentivado e executado na aplicação nacional. O tema inicialmente escolhido foi “A Água” tendo sido, em cada um dos pólos de atuação, valorizado e desenvolvido sob um aspecto diferente.

Um dos pontos relevantes para a construção de uma identidade nacional na atuação, são as iniciativas imprevistas, inovações feitas pelas próprias docentes envolvidas no projeto, promovendo alterações com características locais. São observados desde a inclusão de itens novos ao material escrito distribuído, até o desenvolvimento autônomo de atividades utilizadas na sala de aula ou em reuniões com os pais, bem como adaptações, com originalidade e competência, para utilização em classes de alunos portadores de necessidades especiais.

Atualmente, a fim de tornar viável uma maior expansão do projeto, optou-se pela criação de um sistema de multiplicadores. Assim, a coordenadora pedagógica e duas professoras de cada uma das escolas, participam de encontros mensais, durante todo o ano letivo, no espaço da Estação Ciência. O objetivo é dar subsídios para que uma reunião semelhante de capacitação seja realizada na própria escola, consolidando assim, um grupo de apoio local às atividades. Para reforçar a ação, a equipe de formadoras3 da Estação Ciência faz visitas bimestrais em reuniões com todos os professores.4

A atitude de compromisso dos professores participantes dá sentido às observações que seguem.5

Distância do conteúdo científico e mudança de metodologia em sala de aula

Dois pontos aparecem com freqüência como os maiores entraves para o estabelecimento do projeto como atividade sistemática em todo o grupo piloto: a insegurança na apresentação da discussão científica e as mudanças profundas requeridas na preparação e dinâmica da aula ministrada.

A fala de uma das professoras, na capacitação realizada em junho deste ano, denota a insegurança na sala de aula devido às expectativas de abrangência do próprio conhecimento. Para elas, há uma cobrança implícita, de que tenham respostas todas as perguntas que possam surgir no contexto do experimento: “É angustiante para o professor, em sala de aula, perceber o quanto o nosso universo de conhecimento é infinito.”6

Na discussão subsequente, a mesma professora concluiu que, através das atividades do projeto, percebeu não ser mais possível a manutenção da atividade docente como estava acostumada, um ensino que chamou de “linear” onde o professor torna-se capaz de uma previsão cuidadosa dos conteúdos e atividades a serem seguidos pela classe. Nas aulas do projeto, é reconhecida a necessidade de uma pré-programação das abordagens e assuntos a serem discutidos, no entanto, a discussão e experimentação coletiva abrem caminho para diferentes possibilidades de ação: “Se faço um experimento com o termômetro, tenho que explicar medidas e isso é ciências, mas é matemática também.... Aí precisa ir pesquisar nos livros, na Internet.”

É interessante ressaltar, que este não é um resultado exclusivo do Brasil. Os problemas da formação científica dos professores das séries iniciais repetem-se também na França, como pode ser corroborado em Charpak (1996) “Mas, as ciências da natureza parecem, hoje em dia, muito complicadas, tanto aos professores quanto aos pais, várias pesquisas mostram que a ausência dessas ciências na escola deve-se essencialmente ao sentimento de insegurança, de ansiedade ou, no mínimo, de mal estar que numerosos professores experimentam em relação a estas ciências. Elas estão muito distantes, das lembranças desses professores, de quando estudavam no ensino fundamental. Elas são muito distantes, distantes demais, das ciências dos estudos superiores que esses professores fizeram e a formação pedagógica neste campo é insuficiente.. Além disso, colocar a “mão na massa” ou “mãos à obra”, requer material, mas, sobretudo, uma certa facilidade experimental que muitos temem não possuir.”

A Observação da Natureza: instrumento de diálogo e fonte de criatividade

Objetivando atenuar esta dificuldade real, tem sido discutido o papel da atividade experimental como geradora de perguntas e de formulação de hipóteses explicativas que, como tal, tem revelado exercer ação constrangedora, intimidadora até, pela expectativa criada de que o professor deve conhecer as respostas a todas as perguntas e ter visão crítica das hipóteses levantadas. Enquanto se procura formar os professores através de diferentes ações para o suporte conceitual das situações geradas junto aos estudantes, é sugerida a valorização do ato de observar, como uma fonte de conhecimento e de investigação de significados contidos no fenômeno observado, além de uma ação que pode ser coletivamente construída e executada entre professores e alunos.

Em alguns momentos, esta possibilidade surgiu espontaneamente nas atividades desenvolvidas pelo grupo, por exemplo, na solicitação de uma professora para que as crianças observassem uma tempestade, fazendo depois o registro escrito para a socialização na classe. Os relatos incluíram percepções, conclusões e sentimentos, a partir dos quais, a professora trabalhou temas como a formação de nuvens, os estados físicos da água, suas características no estado líquido, entre outras coisas.

Atividades com esse enfoque além de contextualizar o ensino formal da ciência relacionando-o ao cotidiano, (processo complementado na atividade experimental que segue esta ação), incentivam o exercício da observação individual, sugerindo o questionamento da própria realidade e possibilitam o embate com outros significados surgidos na classe favorecendo o diálogo. São oportunidades de abordagem, pelo professor, dos recortes escolhidos pelas crianças e de sua intervenção na zona de desenvolvimento proximal, como propõe Vygotsky (1964). Além disso, vincula a atividade científica ao processo de alfabetização e desenvolvimento da expressão oral e escrita, através da produção textual autônoma ou coletiva, ao serem relatadas as observações. Este fato, além de trazer importantes contribuições para a formação pessoal do aluno, também vincula-se a importante tarefa epistemológica já mencionada por Vygotsky, discutir o papel da linguagem na construção dos conhecimentos (Galvão, 1995).

Os multiplicadores valorizam os resultados obtidos. A citação abaixo compôs a resposta de uma coordenadora pedagógica, ao ser questionada sobre as vantagens de utilização da metodologia proposta nas aulas do projeto Mão na Massa. Segundo ela, as possibilidades superam a questão científica, já normalmente apresentada pelos professores e possibilitam um relacionamento diferenciado com a classe e cumprem um importante papel em outras atividades. “A construção de textos espontâneos é muito rica. Agora que as crianças escreveram os registros delas, vamos colocá-los no quadro, sem os nomes e as próprias crianças corrigem. Quando elas escrevem um texto, conseguimos ver tudo o que ela sabe ou não sabe na ortografia. Então, é nas aulas do projeto que conseguimos fazer um diagnóstico das dificuldades na escrita, na compreensão e na oralidade.”

Criatividade docente: carregar um cubo de gelo

Apesar de ainda não terem sido aqui mencionadas, há dificuldades estruturais já amplamente conhecidas na escola, entre as quais estão o pouco tempo destinado à preparação das aulas, a falta de uma infra-estrutura que facilite a atividade experimental, como a existência de salas ambiente ou laboratórios, bem como a contratação de profissionais capacitados para o auxílio e desenvolvimento das atividades. Medidas políticas precisam ser buscadas com urgência, se houver o interesse em uma melhora significativa no ensino formal da ciência, particularmente no ensino fundamental.

Neste sentido, a implementação imediata de ações exige, por parte dos interessados, o relacionamento com os problemas mencionados, o que muitas vezes gera alguns inconvenientes como a falta de material para os experimentos vinculados aos estados físicos da água (gelo, água quente, termômetro, entre outros), o que no projeto tenta-se contornar com a montagem de uma caixa com os materiais necessários aos experimentos. Assim, um grupo de professoras, objetivando resolver uma dificuldade particular de realização do experimento, propôs às crianças que trouxessem à escola, um único cubo de gelo, o que mostrou-se obviamente muito complicado, quando não impossível. Discutir a história do seu cubo de gelo era a ação seguinte, inclusive abordando os estados físicos da água, temperatura de transição, condições de manutenção de baixas temperaturas, forma da água entre outros assuntos destacados pelos participantes da atividade. Devido ao sucesso, a mesma atividade foi utilizada em reunião de pais da escola, onde buscava-se divulgar o projeto

Dificuldade de alteração da prática docente

É amplamente reconhecida a dificuldade de alteração da prática docente, principalmente em se tratando de professores com grande experiência profissional. Por esta razão, aparece latente a questão da reestruturação dos cursos de formação de professores para este nível, que, dificilmente consideram com seriedade e aprofundamento a questão do aprendizado da ciência. Muito mais simples do que transformar a prática, é incentivar sua construção adequada, contemplando o conhecimento e principalmente, o interesse pela ciência nos profissionais. Feito isso, parece claro, principalmente se considerada a experiência do grupo piloto aqui mencionado, que caberia aos próprios professores a utilização autônoma das várias e diferentes propostas de experimentação disponíveis (por exemplo, Carvalho et al., 1998; Borges e Moraes, 1998), cabendo a uma iniciativa particular como o projeto Mão na Massa, apenas sugerir direcionamentos à prática, fortalecida e renovada por um conhecimento básico individual.

As práticas convencionalmente adotadas (muitas vezes de forma inconsciente), incluem opções metodológicas engessadas e que excluem o ambiente propício à realização de questionamentos, observações e experimentos, o que faz com que surjam prontamente, ao ser efetivada a tentativa de implementação sistemática da atividade experimental no ensino fundamental, dificuldades de diferentes origens. Segundo Nardi (1998), são fatores relevantes na mudança da ação pedagógica, aqueles devidos ao meio onde se insere o docente, aqueles relacionados ao sistema de ensino vigente, fatores vinculados a unidade escolar, ao Ensino de Ciências de modo geral e outros, referentes à postura normalmente crítica dos docentes quanto ao próprio trabalho, o que é um facilitador da ação.

Nesta direção, um exemplo do caráter das dificuldades enfrentadas, é uma resistência ao trabalho coletivo autônomo entre grupos na sala de aula, uma vez que as atividades, de modo geral, costumam ser dirigidas em condições favoráveis ao controle, com os alunos organizados em fileiras e sentados em carteiras individuais. O fato de serem crianças, acresce preocupações tanto com a segurança na manipulação de itens estranhos ao cotidiano escolar, quanto com a perda do controle do comportamento da classe. A dificuldade se justifica uma vez que apenas uma professora deverá atender e auxiliar a todos os grupos, realizando uma ação a que ela própria não está habituada. Este fato costuma gerar grande ansiedade nos docentes nos contatos iniciais com a proposta.

No entanto, observações mostram que de fato, nas primeiras atividades experimentais, a excitação das crianças pode trazer desconforto e mesmo gerar situações inconvenientes, mas à medida que se tornam habituais, aumenta a participação do grupo sem prejuízo na disciplina.

Duas professoras do grupo piloto desenvolveram uma estratégia que ameniza os atropelos das primeiras sessões: elaboram um contrato que inclui regras de comportamento e de organização, para que as atividades experimentais possam ocorrer com freqüência. Depois de lido e aceito, o contrato é assinado por cada aluno e colado em um caderno destinado às anotações individuais dos estudantes. Esse contrato também define funções dentro do grupo para a realização das ações necessárias ao andamento das atividades como transporte da água, montagem experimental e lavagem final do material. Tais funções se alteram a cada nova sessão.

Por facilitar o trabalho durante a experimentação e expor os alunos à negociação das tarefas e exercício da responsabilidade individual junto a um grupo de trabalho, esta estratégia é bem vista pelo grupo piloto e utilizada em diferentes atividades, como menciona uma professora: “Junto aos alunos é importante por causa da divisão, do trabalho em grupo. Nós distribuímos tarefas, isso tranqüilizou as atividades. Foi marcante para as crianças, quase mais marcante do que a própria pesquisa. As crianças adoraram ter funções.”

Aspectos realizados no projeto

Considera-se, de forma geral, que a aproximação objetiva com os fenômenos da natureza, sejam fenômenos físicos ou biológicos, sociais ou psicológicos, possibilita a criação de espaço da intersubjetividade e que a possibilidade de fruição desse espaço coletivo favorece a construção das individualidades. Atividades que favoreçam a imaginação, a criatividade, um gesto novo, um discernimento original, pensamentos e idéias compartilháveis constróem vínculos construtivos e transformadores da convivência. (Kubli, 1982).

Quanto à alteração na atitude docente, o tema vem sendo freqüentemente abordado nas capacitações através de palestras, discussões e atividades que demonstram a necessidade e as vantagens em fazê-lo. Procura-se, ao mesmo tempo, apontar diretrizes de como efetivar esta mudança, uma vez que o caminho não é trivial. O surgimento constante de atividades originais desenvolvidas e aplicadas pelas professoras parece apontar para um resultado positivo nesta direção.

É apontada ainda como vantagem da aplicação do projeto, a participação da coordenadora pedagógica nas atividades em sala de aula, utilizada por algumas escolas como estratégia para resolver o problema da falta de infra-estrutura. Além de atuar em questões de ordem prática como acompanhar as crianças na busca de água e auxiliar a professora com as atividades junto aos estudantes, esta ação, segundo a descrição de uma das coordenadoras, possibilita o trânsito de informações tanto conceituais, quanto organizacionais e permite a percepção das dificuldades das professoras e dos alunos, formulando uma reflexão dos indivíduos em relação ao grupo. A coordenadora em questão referia-se, por exemplo, a saber quais classes desenvolvem os experimentos com mais facilidade, onde ocorrem maiores problemas de negociação, quais grupos promovem discussões mais aprofundadas, como são resolvidos os problemas que surgem durante a atividade, formulando sobre as classes e os docentes uma compreensão mais estruturada das soluções e dificuldades encontradas em cada sala de aula.

Com objetivo semelhante, o grupo piloto sugeriu a implementação do que foi chamado caderno itinerante. Uma espécie de livro que circula entre as escolas. A cada lugar onde chega, as professoras acrescentam material produzido nas aulas, fotos, relatos de experiências ou qualquer outra informação que pareça relevante ser socializada. Além de uma fonte importante de consulta e conversa entre as professoras, este caderno serve como uma eficiente forma de divulgar, avaliar e acompanhar as atividades do projeto neste momento, mais apropriado à realidade do projeto do que um sitio na internet como o que existe na França.

Assim, apesar das dificuldades que vem surgindo e da pequena abrangência atual das ações, o processo de implementação do Projeto ABC na Educação Científica- Mão na Massa, contribui com a formação efetiva dos professores, oferece experimentação e discussões de conceitos científicos, disponibiliza materiais e busca possibilitar o surgimento de ações autônomas, que são agregadas ao acervo de atividades do projeto como forma de enriquecimento do material e valorização do trabalho docente. Assim, as transformações em curso objetivam contribuir para a formação de uma nova classe de profissionais, melhor preparados para o ensino de ciências e a utilização da atividade experimental junto ao público específico das crianças no ensino fundamental. Neste sentido, a participação da universidade mostra-se bastante importante, através da consultoria científica das atividades do projeto, da análise e acompanhamento das ações desenvolvidas buscando reforçar o compromisso com a transformação dos currículos e visando atender uma lacuna do ensino formal.

Para finalizar, pode-se mencionar o comentário de uma professora que vem aplicando o projeto desde 2001 segundo a qual não é incomum ouvir ou saber através dos pais, que ao serem questionado quanto ao que pretendem ser quando crescer, as crianças respondam: cientista. Este ponto é interessante para futuras investigações sobre que representação de cientista foi elaborada na prática do projeto.

Considerações Finais

Inicialmente, cabe ressaltar, que os dados relativos às experiências observadas confirmam que estes professores, apesar da pouca formação em ciências, criam formas de enriquecer as interações em sala de aula e na escola de forma geral, desenvolvendo capacidades que fortalecem a participação da comunidade (pais e outras pessoas) o que, por sua vez, valoriza o trabalho. Esse é, por si, resultado de qualidade em termos da socialização, uma das metas explícitas no projeto Mão na Massa e de qualquer projeto educacional.

No entanto, a alfabetização científica só será efetiva a longo prazo e com recursos humanos condizentes. É importante que se reconheçam situações profícuas de apoio a professores em exercício e a identificação de ementas básicas para cursos de formação que possam proporcionar aos professores uma real apropriação cultural do que são as ciências como ligação humana com o mundo.

Assim, a experiência de implementação do projeto Mão na Massa permite concluir dois pontos fundamentais: 1. A tentativa de inserção de projetos voltados para o ensino de ciências, sem um concomitante processo de formação continuada dos docentes em exercício é inviável. Particularmente quando se trata de docentes do ensino fundamental em qualquer nível onde, raramente, ocorre a formação acadêmica em alguma área científica. 2. O fato de os cursos de graduação e pós-graduação voltados para professores do ensino fundamental desconsiderarem a formação em ciência, inviabiliza a construção de um nível mais adequado de conhecimento científico na população de modo geral. Inserir mudanças no processo formativo é a maneira mais eficaz de evitar a dificuldade encontrada pelos profissionais que já atuam, de transformar sua prática.

As dificuldades de ordem estrutural do cotidiano escolar contribuem fortemente para o construção do cenário atual onde o conhecimento científico permanece excluído da escola até o final do ensino médio, até mesmo do pensamento docente, em sua maioria. São fatores a serem corrigidos: a baixa remuneração dos docentes, a falta de previsão e remuneração adequada do tempo destinado ao planejamento das aulas, a falta de políticas que não apenas possibilitem, mas valorizem a formação continuada dos docentes em serviço, a organização adequada da infra-estrutura das escolas (bibliotecas, acesso dos docentes à internet, falta de laboratórios e profissionais qualificados para apoio a este tipo de atividades).

A colaboração entre os docentes atuantes na rede escolar fundamental e os docentes, pesquisadores e técnicos da Universidade, através das interações em serviço desenvolvidas e da consultoria contínua às atividades do projeto aqui pesquisado deve convergir para a organização de cursos de formação para professores que incluam a discussão científica. Disciplinas específicas de conteúdo e disciplinas de integração interdisciplinar com metodologias diversificadas vão requerer esforços de experimentação e práticas comprometidas com o objetivo.

Inovações na estrutura escolar estão desencontradas de propostas de conteúdos e métodos. A Universidade tem a desempenhar, a longo prazo, o compromisso e a responsabilidade que ela representa em termos de formação dos agentes na educação contemporânea. Também deve-se ressaltar a organização proposta na experiência aqui relatada de que os agentes formadores pertençam às escolas e realimentem, de volta dos centros de apoio, as propostas de suas escolas.

A colaboração internacional contem fator de estímulo para a troca de experiências e, principalmente, pelo significado político, para definição de estratégias de ação na valorização dos professores dentro da escola e fora dela.

Embora seja reconhecida como condição favorável para o desenvolvimento cognitivo, a ampliação do escopo da sociabilidade na escola requer a ativação, na sociedade, do reconhecimento do papel do professor. Também o papel da escola e, sobretudo, da escola pública, está para ser compreendido no contexto da cultura contemporânea que contém muitas situações novas, inclusive a componente democratizante da disseminação do conhecimento científico.

Apontamos alguns pontos para pesquisas específicas: na área de epistemologia, lógica e teoria das ciências - sobre a percepção desenvolvida na ligação do ser humano com a natureza e a moldagem fenomenológica (ainda a questão do método); na área de psicologia - aprendizagem e desenvolvimento nos fenômenos relativos à sociabilidade humana (interações dialógicas e educação para a liberdade); nas áreas de sociologia e história da educação - a escola e a democratização das sociedades contemporâneas. 

Referências

ASTOLFI, J.-P. et al. (1978). Quelle éducation scientifique, pour quelle société ? Paris.

BAHKTIN M. (1981) Marxismo e Filosofia da Linguagem . Tradução de Lahud, M. e Frateschi-Vieira Y., Ed. Hucitec, São Paulo, 2a. ed.

BORGES, Regina Maria Rabello e MORAES, Roque (org.) (1998) “Educação em Ciências nas séries iniciais” Ed. Sagra Luzzatto, Porto Alegre, Brasil.

CARVALHO, A. M. P. de et al. (1998) “Ciências no ensino fundamental” Ed. Scipione, São Paulo, Brasil.

CHARPAK, G. (1996). La Main a la Pâte: Les Sciences a l'École Primaire. França: Flammarion.

GALVÃO, Izabel (1995) “Henri Wallon Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil” Ed. Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro.

HELLER, Agnes (1985) “O Cotidiano e a História” Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, Ed. Paz e Terra.

HERGER, D.E. (Ed.) 1990 “History and Philosophy of Science for Science Teaching”, University of Florida, Estados Unidos.

KUBLI, F. (1982) “A psicologia cognitiva de Piaget e suas conseqüências para o ensino de Ciências” em European Journal of Science Education, 1979, vol 1, no. 1. Tradução de Katya Aurani em Caderno de Ensino de Conceitos em Física, Amélia Hamburger (Org.), PUBLICAÇÕES IFUSP/P-377.

NARDI, R. org. (1998). Questões atuais no ensino de ciências. São Paulo, SP, Escrituras, p. 33-41.

VYGOTSKY, S. (1964) “Thought and Language”, Cambridge University Press.

WALLON, H.: (1942) “De L'Acte à la Pensé” Flammarion, Paris, França. 


1. O ensino de ciências no Brasil têm recebido avaliação desfavorável em pesquisas internacionais (p.ex. o exame PISA, www.inep.gov.br) também em séries mais avançadas.

 2. Descrições do Projeto e apresentações sobre sua aplicação foram feitas pelos participantes em 2002 e 2003, em vários congressos nacionais (da Sociedade Brasileira de Química e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e internacionais (do ICSU , no Rio de Janeiro e da RED POP, em Léon, no México).

 3. Além das atuais responsáveis, Beatriz A. C. de Castro e Rafaela Samagaia, compuseram a equipe Sandra Mutarelli Setúbal e Christiane Izumi Yamamoto.

 4. Reuniões gerais têm sido organizadas com representantes dos núcleos de aplicação, da Fiocruz e do CDCC, das secretarias de educação de São Paulo e do governo francês. Essas reuniões têm indicado que existe coesão teórica e na prática do projeto.Destacam-se, entre outras, as participações ativas de Noberto C. Ferreira, Dietrich Schiel, Danielle Grynszpan, Eleuza Guazzelli, Maria Lúcia Santos, Cristina Okida, Bernard Felix e David Jasmin.

 5. Este trabalho é, obviamente, dedicado aos estudantes das escolas fundamentais. Trazemos para discussão na esfera dos pesquisadores em Educação em Ciencias, um lugar privilegiado de reflexão crítica, com a intenção de aprofundar as questões levantadas e para divulgar e valorizar o trabalho realizado pelos professores, objeto da pesquisa.

 6. As manifestações de professores são anotadas por Rafaela Samagaia e Beatriz A. C. de Castro Ataide, ao longo das discussões. As citações deste artigo são registros de Rafaela Samagaia. 

 

 

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